sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

A eutanásia legalizada



Não poderás vencer a morte. Mas impõe-lhe a vida como um bandarilheiro e verás que muitas vezes ela marra no vazio - Vergílio Ferreira.

A legalização da eutanásia pode ser a abertura da caixa de pandora. Para já a relação de confiança entre o médico e o doente vai ficar afectada. Na Holanda e na Bélgica o conceito inicial de eutanásia tem sido alargado e o número dos intervencionados tem aumentado todos os anos. Fala-se mesmo de casos que são mais homicídios do que morte assistida e que há médicos que se refugiam em consultas de psiquiatria afectados pelo que vêem. A nossa lei fundamental é contra o exercício da morte e fica por esclarecer como é que o Estado vai resolver esta incompatibilidade. Na discussão invocaram-se os cuidados paliativos e outros meios da ciência médica para evitar o sofrimento a que aparentemente se foge devido à componente económica; a equação final ainda vai fazer correr muita tinta. E depois de encontrada não fica garantido que a polémica acabe, dado que a hipótese do referendo foi torneada por quem tinha interesse nisso.
Respeito a decisão daqueles que, em desespero de causa e não tendo família com meios nem disposição para apoio condigno na doença, recorrem à eutanásia. Mas a maioria do povo, não entende a pressa da legalização da mesma que pouco lhe diz. As pessoas têm uma filosofia diferente e afirmam: se eu não pedi para nascer, não vou pedir para morrer. Percebem o ciclo natural da vida e enfrentam com estoicismo a sombra da morte até ao último momento. Subscrevo este entendimento e daí a pergunta: “A quem serve a morte? Que o digam as funerárias e os herdeiros dos falecidos.”
Uma nota final: é de salientar e louvar o voto contra a despenalização da eutanásia do PCP. Para admiração de muita gente o PCP votou contra a morte e disse sim à VIDA. Com esta decisão, aliás tomada por vários deputados de outros partidos, entendeu-se e muito bem, que é prioritário salvaguardar a vida e a saúde dos portugueses e acabar com as lamentáveis mortes nas listas de espera e nos corredores das urgências dos hospitais do SNS.

Pós-texto: ver aqui conceitos gerais de uma morte digna.


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Democracia

 


Rousseau tem razão. Entretanto, a estratégia do poder passa por manipular e adormecer o "rebanho", com os sonhos dos "amanhãs que cantam."

Analisada globalmente a democracia oferece-nos duas imagens muito contrastantes. Por um lado, na forma de democracia representativa, ela é hoje considerada internacionalmente o único regime político legítimo. Investem-se milhões de euros e dólares em programas de promoção da democracia, em missões de fiscalização de processos eleitorais e, quando algum país do chamado Terceiro Mundo manifesta renitência em adoptar o regime democrático, as agências financeiras internacionais têm meios de o pressionar através das condições de concessão de empréstimos. Por outro lado, começam a proliferar os sinais de que os regimes democráticos instaurados nos últimos trinta ou vinte anos traíram as expectativas dos grupos sociais excluídos, dos trabalhadores cada vez mais ameaçados nos seus direitos e das classes médias empobrecidas. Inquéritos recentes feitos na América Latina revelam que em alguns países a maioria da população preferiria uma ditadura desde que lhes garantisse algum bem-estar social. Acresce que as revelações, cada vez mais frequentes, de corrupção levam à conclusão que os governantes legitimamente eleitos usam o seu mandato para enriquecer à custa do povo e dos contribuintes. Por sua vez, o desrespeito dos partidos, uma vez eleitos, pelos seus programas eleitorais parece nunca ter sido tão grande. De modo que os cidadãos se sentem cada vez menos representados pelos seus representantes e acham que as decisões mais importantes dos seus governos escapam à sua participação democrática.
O contraste entre estas duas imagens oculta um outro, entre as democracias reais e o ideal democrático. Rousseau foi quem melhor definiu este ideal: uma sociedade só é democrática quando ninguém for tão rico que possa comprar alguém e ninguém seja tão pobre que tenha de se vender a alguém. Segundo este critério, estamos ainda longe da democracia. Os desafios que são postos à democracia no nosso tempo são os seguintes. Primeiro, se continuarem a aumentar as desigualdades sociais entre ricos e pobres ao ritmo das três últimas décadas, em breve, a igualdade jurídico-política entre os cidadãos deixará de ser um ideal republicano para se tornar numa hipocrisia social constitucionalizada. Segundo, a democracia actual não está preparada para reconhecer a diversidade cultural, para lutar eficazmente contra o racismo, o colonialismo e o sexismo e as discriminações em que eles se traduzem. Isto é tanto mais grave quanto é certo que as sociedades nacionais são cada vez mais multiculturais e multiétnicas. Terceiro, as imposições económicas e militares dos países dominantes são cada vez mais drásticas e menos democráticas. Assim sucede, em particular, quando vitórias eleitorais legítimas são transformadas pelo chefe da diplomacia norte-americana em ameaças à democracia, sejam elas as vitórias do Hamas, de Hugo Chavez ou de Evo Morales. Finalmente, o quarto desafio diz respeito às condições da participação democrática dos cidadãos. São três as principais condições: ser garantida a sobrevivência: quem não tem com que alimentar-se e à sua família tem prioridades mais altas que votar; não estar ameaçado: quem vive ameaçado pela violência no espaço público, na empresa ou em casa, não é livre, qualquer que seja o regime político em que vive; estar informado: quem não dispõe da informação necessária a uma participação esclarecida, equivoca-se quer quando participa, quer quando não participa.
Pode dizer-se com segurança que a promoção da democracia não ocorreu de par com a promoção das condições de participação democrática. Se esta tendência continuar, o futuro da democracia, tal como a conhecemos, é problemático. - Boaventura de Sousa Santos. Visão- 31/08/2006.
Pós texto: depois de fazer a presente publicação dei-me conta que já tinha dado à estampa uma publicação idêntica com o mesmo título que pode ser vista aqui: http://limonete.blogspot.com/2012/02/democracia.html. A de hoje devia ter um título diferente. Assumo o lapso e por isso peço desculpa aos meus leitores. O que eu pretendo chamar a atenção com este tema é que vivemos num simulacro de democracia que só interessa a uma elite que está muito mais preocupada com os seus interesses do que com os reais interesses do povo e do país. Na prossecução deste objectivo, talvez inglório, faço, amiúde, referência à opinião de conhecidas figuras de reconhecido valor das nossas letras e não só, que, pese embora com ideologias diferentes ou mesmo sem qualquer filiação partidária, sabem que a democracia do nosso país está doente e é um repositório de equívocos deliberados com a intenção de "adormecer e manipular o rebanho," como digo acima.