quinta-feira, 23 de junho de 2022

Os anões de Putin

 Putin tem uma legião de anões mais vasta do que a de Pedro o Grande. Basta pensar em todos os que torcem para que a Rússia ganhe. Quando proclama o seu imorredoiro amor pela paz é isso que o PCP pede.

Pedro, o Grande, tinha aquilo que, até ao século XVIII, se chamava um “gabinete de curiosidades”. Simon Sebag Montefiore, no seu livro sobre Os Romanov, dá-nos a lista de algumas das peças que figuravam nessa colecção: um hermafrodita vivo (que acabou por fugir), anões e gigantes, igualmente vivos, que, depois de mortos, eram embalsamados ao lado dos órgãos genitais de um hermafrodita, irmãos siameses, bebés com duas cabeças e, com o tempo, cabeças embalsamadas de cortesãos (muitos) caídos em desgraça. Mas eram os gigantes e os anões que sobretudo o fascinavam, particularmente os segundos. Fazia-os, por exemplo, em certas festas, saírem nus de enormes bolos. Punha particular empenho em organizar os seus casamentos, escoltando-os até ao leito nupcial. Distribuía-os em grande número aos grandes dignatários. É verdade que gostava também de apresentar gigantes finlandeses vestidos com roupa de bebé. Mas os anões eram a sua especialidade, por assim dizer.

Como se sabe, Putin manifestou recentemente a sua admiração por Pedro, o Grande, a propósito das suas conquistas na guerra contra a Suécia. De algum modo, é com Pedro, o Grande, que Putin se quer medir. Politicamente, entenda-se, já que, fisicamente, o caso é perdido. Pedro, o Grande, era de facto muito alto (2,03 metros, parece), e Putin não passa dos 1,68. Já que a estatura média de um anão é de 1,40, Putin está mais próximo dos anões de Pedro do que do próprio Pedro, o que nos permite pensar que este último o afeiçoaria singularmente. Mas a emulação política permanece compreensível. E até, se formos adeptos da psicologia adleriana, eminentemente inteligível. Um complexo de inferioridade abre largas avenidas para um complexo de superioridade compensatório.

À sua maneira, Putin tem, ele mesmo, uma legião de anões infinitamente mais vasta do que a de Pedro. Basta pensar em todos aqueles que, explícita ou implicitamente, torcem para que a Rússia ganhe, e ganhe depressa, a sua guerra contra a Ucrânia. Quando proclama o seu imorredoiro amor pela paz é isso que, por exemplo, o PCP pede, como toda a gente percebe. O PC tem um lugar de excelência entre a extensa legião dos anões de Putin. Não é uma imagem agradável, mas, em contrapartida, possui alguma verosimilhança: numa esplêndida festa no Kremlin, Putin faria sair, de dentro de um gigantesco bolo, a totalidade dos membros do Comité Central no estado em que a natureza os trouxe ao mundo. Talvez pudesse até dar lugar a uma memorável primeira página do Avante.

Mas não há nenhuma razão para ficarmos pelo PC. Os anões de Putin encontram-se um pouco por todo o lado. E a questão que se coloca é a de saber quais são os ingredientes fundamentais que colaboram de forma activa neste processo de nanização mental e política. Estamos aqui condenados à especulação. A minha, tão boa como outra qualquer, é que um elemento fundamental nesta matéria é um velho tema da filosofia política que encontramos, por exemplo, em Locke e em Hume: o entusiasmo. E o entusiasmo em duas das suas facetas: entusiasmo positivo e entusiasmo negativo.

O entusiasmo positivo é aquele que nos faz aderir incondicionalmente àquilo que desejamos como um bem. O entusiasmo negativo é aquele que nos faz rejeitar, não menos incondicionalmente, aquilo que vemos como um mal. Noutra linguagem, o primeiro é uma figura da atracção, o segundo uma encarnação da repulsa. E, o que é fundamental, ambos devem ser concebidos de um modo absoluto, sem falhas que possam introduzir alguma dúvida ou moderação.

Apliquemos este esquema aos anões de Putin, sem qualquer preocupação de exaustividade. Do lado do entusiasmo positivo encontramos, por exemplo, o velho amor pelo poder bruto, o culto da virilidade como virtude política, a adesão instantânea àqueles que se apresentam como prováveis vencedores e, como pano de fundo, a apetência por regimes políticos não-democráticos. Do lado do entusiasmo negativo, o anti-americanismo puro e duro, o protesto contra a decadência moral do Ocidente, o ancestral desprezo por aqueles que se apresentam como virtuais perdedores e, como pano de fundo, a detestação da democracia.

É indecidível qual dos dois entusiasmos é mais determinante no processo de nanização. O mais provável é eles darem-se ambos inseparavelmente em conjunto. No fundo, o entusiasmo positivo reforça o entusiasmo negativo e o negativo reforça o positivo, em graus que variam conforme os indivíduos. Num aspecto, no entanto, é o entusiasmo negativo que fornece o quadro mais importante da nanização putinesca: porque é ele que permite a criação de teorias conspiratórias que conferem ao processo de nanização a forma de uma certeza alucinada. A sua expressão mais simples é a de que o mundo visível é por definição enganador e que é necessário buscar, por detrás deste, por detrás do óbvio e do patente, um invisível onde resida a verdade que nos é sistematicamente escondida, sob a forma de uma potência maléfica que tudo manobra. A extrema desconfiança dá lugar a uma ilimitada credulidade. Por exemplo: no mundo visível, a Rússia invadiu a Ucrânia num acto de agressão inteiramente livre – mas, no mundo invisível, a invasão russa foi, do princípio ao fim, condicionada e determinada pela exclusiva acção dos Estados Unidos, os únicos verdadeiros responsáveis pela guerra em curso. De resto, por uma idealização simples e com ambições de elegância, os Estados Unidos são os únicos agentes dotados de uma verdadeira causalidade eficaz neste nosso velho planeta.

O “gabinete de curiosidades” de Putin está cheio destas curiosas almas que andam aos pulinhos por todo o lado. Não custa imaginar o olhar terno e benevolente com que o autocrata contempla os seus entusiasmos. Tanto quando aplaudem a guerra como quando falam, de olhos em alvo, da paz. Porque este “pacifismo” tem uma longa história. Ando a ler um livro (excelente) do historiador inglês Tim Bouverie, Appeasing Hitler, que oferece inúmeros exemplos do “amor pela paz” antes da invasão da Polónia. E, é claro, a Inglaterra estava muito longe de ter o exclusivo destas coisas. Em França, basta pensar, por exemplo, em dois autores muito conhecidos: o romancista Jean Giono e o filósofo Alain. Ambos eram pacifistas militantes. Giono, mesmo depois da invasão da França, não via qualquer diferença entre os nazis e os Aliados, além de manifestar no seu diário uma absoluta indiferença face ao destino dos judeus. Alain, que toda a gente, mesmo a que nunca o leu, conhece por causa de uma frase célebre – “Se alguém diz que não é de esquerda ou de direita, certamente que não é de esquerda” –, além de confessar o seu antissemitismo, declarava, também num seu diário, esperar que a Alemanha ganhasse a guerra, “pois é preciso que o género De Gaulle não vença entre nós” (curiosamente, como a Ucrânia para Putin, também para ele a França não tinha sido invadida pela Alemanha – era uma coisa diferente).

Hitler já tinha os seus anões. E os anões de Putin são muito parecidos com os dele. Por mim, tenho às vezes vontade de os mandar para o gabinete de Pedro. Iam sentir-se em casa. 

Paulo Tunhas - in Observador.


quarta-feira, 8 de junho de 2022

Holodomoro estalinista e a chantagem da fome

 

Não é nova a cobiça de Moscovo pelas terras negras e férteis da Ucrânia do sul, à volta das cidades de Kherson, Zaporizhzhia e Odessa.

É lá que é plantada uma quantidade considerável dos cereais ucranianos, a quarta maior produção mundial de milho e a terceira de trigo.

Cereais cobiçados, mas cereais necessários para matarem a fome a uma parte considerável da população mundial. Caso estes cereais apodreçam nos silos ucranianos, 250 milhões de seres humanos ficam em risco de fome e 440 milhões deixam de poder comprar os produtos feitos à base de cereais de que necessitam para o essencial da sua alimentação.

A cobiça pelos cereais ucranianos vem já dos longínquos anos 30 do século passado, do tempo de Estaline. É aquilo a que os ucranianos chamaram de holodomor ou o "deixar morrer à fome". Quase cinco milhões de cidadãos de etnia ucraniana morreram à fome nos anos de 1931 a 1933. A causa foi a bárbara política do ditador soviético Estaline, que obrigou os agricultores ucranianos, através de uma "requisição compulsória", a entregarem ao Estado soviético a maior parte da produção de cereais ucranianos. Três anos que custaram cinco milhões de vidas de ucranianos que pereceram à fome.

Não é pois nova a questão dos cereais na Ucrânia!

Ucrânia e Rússia, os celeiros do mundo, são responsáveis pela produção de 28 % de trigo, 29% de cevada e 78% de óleo de girassol.
É com os cereais da Ucrânia que as Nações Unidas matam a fome a cerca de 155 milhões de seres humanos, que habitam os destinos pobres de África e do Médio Oriente. Egipto, Gana, Senegal, Líbano, vá se lá saber como a população de maior carência de nutrição destes países vai alimentar-se este ano se persistir o bloqueio.

Apesar da guerra e ainda com os silos cheios dos 25 milhões de toneladas da colheira anterior, os ucranianos já lançaram mãos à obra para as sementeiras deste ano. Trigo, cevada, aveia, girassol e soja. Mas os campos estão minados, os trabalhadores agrícolas ucranianos deixaram as alfaias e vestiram o camuflado para combaterem as tropas invasoras russas. A escassez de combustível para os tractores agrícolas, a destruição de silos pelos russos, o bombardeamento de depósitos de combustível, vão fazer cair a produção em cerca de 50% dos 106 milhões de toneladas de cereais que a Ucrânia semeou em 2021. E depois, onde vão os ucranianos armazenar as novas colheitas se as anteriores continuam a apodrecer nos armazéns portuários sem que os navios as consigam carregar?

O cinismo do Kremlin já se fez ouvir sobre o assunto. E lá vem a chantagem! A Rússia está pronta "para ajudar a uma exportação sem entraves", mas só se o Ocidente levantar as sanções. Depois, no dizer de Putin, os barcos não circulam por causa das minas ucranianas no Mar Negro. Mas isso não impediu que um barco russo saísse de Mariupol rumo à cidade russa de Rostov, carregado com 2700 toneladas de metal roubado aos ucranianos num miserável exercício de pilhagem. Pilhagem que chegou também aos cereais, onde os russos estão a carregar navios com cereais ucranianos no porto de Sebastopol, na Crimeia. Um derivado da metodologia estalinista!

Os cereais são uma questão sensível que pode fazer escalar a guerra. Os países bálticos, Estónia e Lituânia, profundos conhecedores do modo de actuação do Kremlin, falaram em enviar navios de guerra para o Mar Negro para furar o bloqueio que a Marinha russa está a fazer aos portos da Ucrânia.

Imagine-se, contudo, o risco de uma operação deste tipo? Mas até quando poderá o mundo continuar a assistir a uma situação de flagrante violação do Direito Internacional? Até quando a Rússia, impunemente, vai continuar na senda de lançar o caos num equilíbrio mundial construído ao longo das últimas décadas? Até quando Putin pode, impunemente, pôr em causa o direito à alimentação de seres humanos mais pobres e desfavorecidos do mundo? Até quando Putin poderá continuar com esta chantagem da fome, com contornos muito idênticos ao que fez Estaline no holodomor?

Mas onde é que Merkel teria a cabeça quando vislumbrou em Putin um parceiro confiável?

DN António Capinha-Jornalista

03 Junho 2022