Putin tem uma legião de anões mais vasta do que a de Pedro o Grande.
Basta pensar em todos os que torcem para que a Rússia ganhe. Quando
proclama o seu imorredoiro amor pela paz é isso que o PCP pede.
Pedro, o Grande, tinha aquilo que, até ao século XVIII, se chamava um
“gabinete de curiosidades”. Simon Sebag Montefiore, no seu livro sobre Os Romanov,
dá-nos a lista de algumas das peças que figuravam nessa colecção: um
hermafrodita vivo (que acabou por fugir), anões e gigantes, igualmente
vivos, que, depois de mortos, eram embalsamados ao lado dos órgãos
genitais de um hermafrodita, irmãos siameses, bebés com duas cabeças e,
com o tempo, cabeças embalsamadas de cortesãos (muitos) caídos em
desgraça. Mas eram os gigantes e os anões que sobretudo o fascinavam,
particularmente os segundos. Fazia-os, por exemplo, em certas festas,
saírem nus de enormes bolos. Punha particular empenho em organizar os
seus casamentos, escoltando-os até ao leito nupcial. Distribuía-os em
grande número aos grandes dignatários. É verdade que gostava também de
apresentar gigantes finlandeses vestidos com roupa de bebé. Mas os anões
eram a sua especialidade, por assim dizer.
Como
se sabe, Putin manifestou recentemente a sua admiração por Pedro, o
Grande, a propósito das suas conquistas na guerra contra a Suécia. De
algum modo, é com Pedro, o Grande, que Putin se quer medir.
Politicamente, entenda-se, já que, fisicamente, o caso é perdido. Pedro,
o Grande, era de facto muito alto (2,03 metros, parece), e Putin não
passa dos 1,68. Já que a estatura média de um anão é de 1,40, Putin está
mais próximo dos anões de Pedro do que do próprio Pedro, o que nos
permite pensar que este último o afeiçoaria singularmente. Mas a
emulação política permanece compreensível. E até, se formos adeptos da
psicologia adleriana, eminentemente inteligível. Um complexo de
inferioridade abre largas avenidas para um complexo de superioridade
compensatório.
À sua maneira, Putin tem, ele mesmo, uma legião de
anões infinitamente mais vasta do que a de Pedro. Basta pensar em todos
aqueles que, explícita ou implicitamente, torcem para que a Rússia
ganhe, e ganhe depressa, a sua guerra contra a Ucrânia. Quando proclama o
seu imorredoiro amor pela paz é isso que, por exemplo, o PCP pede, como
toda a gente percebe. O PC tem um lugar de excelência entre a extensa
legião dos anões de Putin. Não é uma imagem agradável, mas, em
contrapartida, possui alguma verosimilhança: numa esplêndida festa no
Kremlin, Putin faria sair, de dentro de um gigantesco bolo, a totalidade
dos membros do Comité Central no estado em que a natureza os trouxe ao
mundo. Talvez pudesse até dar lugar a uma memorável primeira página do
Avante.
Mas não há nenhuma razão para ficarmos pelo PC. Os anões
de Putin encontram-se um pouco por todo o lado. E a questão que se
coloca é a de saber quais são os ingredientes fundamentais que colaboram
de forma activa neste processo de nanização mental e política. Estamos
aqui condenados à especulação. A minha, tão boa como outra qualquer, é
que um elemento fundamental nesta matéria é um velho tema da filosofia
política que encontramos, por exemplo, em Locke e em Hume: o entusiasmo.
E o entusiasmo em duas das suas facetas: entusiasmo positivo e
entusiasmo negativo.
O
entusiasmo positivo é aquele que nos faz aderir incondicionalmente
àquilo que desejamos como um bem. O entusiasmo negativo é aquele que nos
faz rejeitar, não menos incondicionalmente, aquilo que vemos como um
mal. Noutra linguagem, o primeiro é uma figura da atracção, o segundo
uma encarnação da repulsa. E, o que é fundamental, ambos devem ser
concebidos de um modo absoluto, sem falhas que possam introduzir alguma
dúvida ou moderação.
Apliquemos este esquema aos anões de Putin,
sem qualquer preocupação de exaustividade. Do lado do entusiasmo
positivo encontramos, por exemplo, o velho amor pelo poder bruto, o
culto da virilidade como virtude política, a adesão instantânea àqueles
que se apresentam como prováveis vencedores e, como pano de fundo, a
apetência por regimes políticos não-democráticos. Do lado do entusiasmo
negativo, o anti-americanismo puro e duro, o protesto contra a
decadência moral do Ocidente, o ancestral desprezo por aqueles que se
apresentam como virtuais perdedores e, como pano de fundo, a detestação
da democracia.
É indecidível qual dos dois entusiasmos é mais
determinante no processo de nanização. O mais provável é eles darem-se
ambos inseparavelmente em conjunto. No fundo, o entusiasmo positivo
reforça o entusiasmo negativo e o negativo reforça o positivo, em graus
que variam conforme os indivíduos. Num aspecto, no entanto, é o
entusiasmo negativo que fornece o quadro mais importante da nanização
putinesca: porque é ele que permite a criação de teorias conspiratórias
que conferem ao processo de nanização a forma de uma certeza alucinada. A
sua expressão mais simples é a de que o mundo visível é por definição
enganador e que é necessário buscar, por detrás deste, por detrás do
óbvio e do patente, um invisível onde resida a verdade que nos é
sistematicamente escondida, sob a forma de uma potência maléfica que
tudo manobra. A extrema desconfiança dá lugar a uma ilimitada
credulidade. Por exemplo: no mundo visível, a Rússia invadiu a Ucrânia
num acto de agressão inteiramente livre – mas, no mundo invisível, a
invasão russa foi, do princípio ao fim, condicionada e determinada pela
exclusiva acção dos Estados Unidos, os únicos verdadeiros responsáveis
pela guerra em curso. De resto, por uma idealização simples e com
ambições de elegância, os Estados Unidos são os únicos agentes dotados
de uma verdadeira causalidade eficaz neste nosso velho planeta.
O
“gabinete de curiosidades” de Putin está cheio destas curiosas almas que
andam aos pulinhos por todo o lado. Não custa imaginar o olhar terno e
benevolente com que o autocrata contempla os seus entusiasmos. Tanto
quando aplaudem a guerra como quando falam, de olhos em alvo, da paz.
Porque este “pacifismo” tem uma longa história. Ando a ler um livro
(excelente) do historiador inglês Tim Bouverie, Appeasing Hitler,
que oferece inúmeros exemplos do “amor pela paz” antes da invasão da
Polónia. E, é claro, a Inglaterra estava muito longe de ter o exclusivo
destas coisas. Em França, basta pensar, por exemplo, em dois autores
muito conhecidos: o romancista Jean Giono e o filósofo Alain. Ambos eram
pacifistas militantes. Giono, mesmo depois da invasão da França, não
via qualquer diferença entre os nazis e os Aliados, além de manifestar
no seu diário uma absoluta indiferença face ao destino dos judeus.
Alain, que toda a gente, mesmo a que nunca o leu, conhece por causa de
uma frase célebre – “Se alguém diz que não é de esquerda ou de direita, certamente que não é de esquerda” –, além de confessar o seu antissemitismo, declarava, também num seu diário, esperar que a Alemanha ganhasse a guerra, “pois é preciso que o género De Gaulle não vença entre nós”
(curiosamente, como a Ucrânia para Putin, também para ele a França não
tinha sido invadida pela Alemanha – era uma coisa diferente).
Hitler
já tinha os seus anões. E os anões de Putin são muito parecidos com os
dele. Por mim, tenho às vezes vontade de os mandar para o gabinete de
Pedro. Iam sentir-se em casa.
Paulo Tunhas - in Observador.