Não sou professor, mas fui aluno e tive bons professores. Acredito que a classe docente é nuclear para a formação de bons cidadãos e futuros dirigentes do País. É inacreditável a actual situação dos professores e não compreendo porque é que o poder político destrata tanto a classe docente e a obriga a defender, pela via da greve, a dignidade e a melhoria da sua profissão. Daí porque dou à estampa o artigo de opinião que se segue:
"O cansaço
que nasce disto tudo não é metafísico nem poético, é um sintoma de exaustão que
empurra os professores para um espaço fora de si mesmos. Os professores
portugueses mereciam outro país.
Se quisermos compreender o estado de alma de um professor português de hoje, se
alguém quiser analisar a sua autopsicografia, comece por ler o poema O que
há em mim é sobretudo cansaço, de Álvaro de Campos, e encontrará aí o
melhor retrato psicológico do professor português de hoje. “Um supremíssimo
cansaço”, num dos versos do poema, é aquilo que sentem os professores que nas últimas décadas se têm
adaptado a todas as modificações que lhes impuseram na sua vida profissional.
Agora rebentaram as águas do desespero, da exaustão de quem não aguenta mais as
vicissitudes da sua profissão.
O professor
português cumpriu tudo o que lhe pediram nas últimas décadas, a cada mudança
curricular, a cada mudança do sistema de avaliação, a cada mudança dos
processos de gestão escolar, a cada regra nova que chegou à sua escola quase
diariamente. Foi calando, foi desabafando com os seus pares, porque a sociedade
desistiu de o compreender, tentou pequenos protestos e nada resultou. Não me
surpreende ver este reerguer de toda uma classe de forma
espontânea, como se todos pertencessem ao mesmo partido da educação, que não
existe, mas que devia existir, que não tem fronteiras políticas e que obedece
apenas ao coração de cada um. Se na Crónica de D. João I, de Fernão
Lopes, aprendemos como se constrói o sentimento colectivo do povo português
pela consciência de que todos pertencemos a uma mesma nação ou comunidade, esta
“arraia-miúda” de professores que agora veio para as ruas transporta o mesmo
sentimento colectivo de uma nação de professores que não aceita mais a
discriminação social e política.
Cada vez
tenho menos argumentos para convencer jovens estudantes a optar por esta profissão. Como explicar-lhes que o Estado
trata os professores de forma diferente: aos governantes que declarem residir
fora de Lisboa dá-lhes ajudas de custo no valor do ordenado mínimo; aos médicos
que queiram ir trabalhar longe de casa, a partir de 2024, através do programa “Mais médicos”, dá-lhe um aumento salarial de 40%
e casa para morar; aos restantes funcionários públicos conta-lhes todo o tempo
de serviço prestado, mas deixa os professores de fora nesta equação; na Madeira e nos Açores, os
professores conseguiram recuperar faseadamente todo o tempo de serviço; no
continente, os professores continuam à espera dessa recuperação, embora todos
descontem por igual para a Caixa Geral de Aposentações; os técnicos superiores
da função pública com doutoramento foram aumentados 400 euros, mas os muitos professores que hoje
já têm doutoramento ficaram exactamente onde estão, com o mesmo dinheiro e sem
uma justa progressão na carreira.
Como
explicar ainda aos jovens aprendizes de professor que aquilo que têm de ensinar
amanhã não é um currículo completo, mas apenas aprendizagens essenciais que
nunca foram concebidas para serem currículo completo? Como explicar-lhes a
lógica de um sistema de avaliação de aprendizagens que anula a função de um
professor e o transforma num polícia de comportamentos que vai anotando em
grelhas insanas cada estímulo recebido, sobrando tempo nenhum para o acto de
ensinar, de pensar naquilo que se ensina e de ajudar a aprender
verdadeiramente?
O cansaço
que nasce disto tudo não é metafísico nem poético, é um sintoma de exaustão e
descrença profissional que empurra os professores para um espaço fora de si
mesmos: já não agem, apenas reagem; já não pensam no seu próprio discurso de
aula, apenas informam; já não conseguem avaliar aprendizagens, apenas registam
resultados visíveis.
Em matéria
de educação, os programas de todos os partidos portugueses são paupérrimos. Não
há um plano estratégico a médio, longo prazo, tudo é pensado para o momento ou
para o tempo de uma legislatura. Mudanças eficazes em educação exigem muito
mais tempo de maturação e, sobretudo, visão estratégica. Se no início deste ano
lectivo, em França, faltavam 4000 professores, o Presidente francês, Emmanuel
Macron, prometeu que nenhum professor iniciaria a sua carreira profissional com
salário inferior a 2000 euros e tentou assim atrair novos profissionais.
Nos EUA, o American
Rescue Plan Act, de Joe Biden, representou em 2021 o maior investimento
público de sempre em educação, com 170 biliões de dólares, focado sobretudo na
contratação de mais professores e combate ao abandono escolar. A República da
Irlanda, país da nossa dimensão, tem um orçamento de quase dez mil milhões de
euros para a educação em 2023, dos quais dois mil milhões para contratar novos
professores. Estes são breves exemplos de políticas com visão estratégica de
quem quer realmente apostar na educação e nos professores.
Também
começo a sentir “um supremíssimo cansaço” disto tudo. Em breve, terei de
enfrentar, num único seminário, 150 novos candidatos a professor. Hei-de
elogiar em primeiro lugar a sua coragem por estarem ali; hei-de encontrar o
melhor discurso possível para lhes explicar a nobreza da profissão; serei
realista ao descrever o local para onde irão trabalhar no futuro, não
esconderei nenhuma vicissitude, apelarei ao melhor de cada um para que possam
sobreviver a esta profissão e no final, se possível, que encontrem o prazer de
ensinar. Só não sei quantos ficarão até ao fim do curso e quantos irão
sobreviver ao primeiro impacto da vida real.
Ninguém
acolhe um jovem professor numa terra estranha. Poucos sobrevivem com apenas
1000 euros líquidos para alimentação, alojamento e viagens e muitos têm de
pedir ajuda aos pais para poderem trabalhar. Parecem condenados a sentir logo
“um supremíssimo cansaço” assim que experimentam a profissão pela primeira vez.
O professor
português não é um fingidor e sente todas as suas dores. Mais, tem de gerir as
dores de todos à sua volta diariamente, substituindo tantas vezes aqueles que
tinham a responsabilidade de cuidar dos afectos dos seus alunos. Hoje, tudo se
pede a um professor, pede-se-lhe a responsabilidade total de educação de um
jovem, embora seja pago apenas para ensinar, por isso, reconhecer que os
professores estejam cansados, supremissimamente cansados, devia ser suficiente
para reconhecer que o seu protesto de classe é justo. Os professores
portugueses mereciam outro país."
Carlos Ceia-
Professor Catedrático da FCSH da Universidade Nova de Lisboa