Seja qual for o resultado dessas eleições, dúvidas não restarão que o eleitorado português se encontra visivelmente divido entre esquerda e direita, sendo ainda notório um crescimento significativo da extrema-direita personificada na imagem do Chega e do seu líder.
"No dia 10 de Março ficaremos a conhecer, quem é que a maioria dos portugueses escolheu para liderar o XXIV Governo Constitucional e quem são os deputados que assumirão funções na XVI legislatura na Terceira República portuguesa. Momento de particular importância para o país, a que acresce o facto simbólico de coincidir com o quinquagésimo aniversário do 25 de Abril de 1974.
Seja qual for o resultado dessas eleições, dúvidas não restarão que o eleitorado português se encontra visivelmente divido entre esquerda e direita, sendo ainda notório um crescimento significativo da extrema-direita personificada na imagem do Chega e do seu líder.
Tal realidade, decorrido que está meio século sobre a "revolução dos cravos", merece reflexão, até porque, como reconhecia no passado mês de Fevereiro o histórico socialista Manuel Alegre, por ocasião da antestreia do filme sobre Mário Soares, "algo falhou".
Mas então o que é que falhou, se é que algo falhou?
"Sabemos hoje que os programas de partidos, as promessas eleitorais, a igualdade dos cidadãos perante a lei, o parlamentarismo, enfim, todas essas tretas são armadilhas de uma imensa minoria que vive luxuosamente à custa de uma imensa maioria. O Estado democrático revelou-se tão arbitrário como qualquer outro, serve antes de mais nada para impor leis relativamente às quais se constitui excepção."
Estas palavras são de Zeca Afonso, pouco antes da sua morte, num tom de desalento premonitório relativamente ao rumo da democracia portuguesa após o 25 de Abril de 1974, em entrevista ao jornal Blitz no ano de 1986. Foi esse mesmo desencanto que o levou, em 1983, a recusar ser distinguido com a Ordem da Liberdade pelo então Presidente da República, Ramalho Eanes.
É, com toda a certeza, este sentimento de desencanto com o rumo da democracia portuguesa que vai levar muitos portugueses a 10 de março a votar em quem acham estar a denunciar abertamente os "podres" da democracia, contra aqueles que se apropriaram dos valores de Abril e que, de forma arrogante, se têm exibido como donos e senhores dos valores da liberdade e do progresso.
O poeta Manuel Alegre, no seu desabafo, falou meia verdade. Algo efectivamente falhou. Contudo, faltou ao poeta socialista a capacidade, e provavelmente a humildade, para assumir a enorme quota parte de responsabilidade que a esquerda tem no desencanto que grande parte dos portugueses tem nesta democracia e a desconfiança que nutre por uma esquerda que se acha proprietária exclusiva dos valores da liberdade e do progresso.
A forma como a esquerda tem radicalizado o seu discurso, rotulando impiedosamente de fascistas, retrógados e xenófobos tudo e todos que não partilham a sua visão da sociedade, tem obviamente contribuído para um sentimento geral que, afinal, a liberdade não aconteceu com o 25 de Abril de 1974, e que continua a haver temas proibidos. Falar de imigração é ser racista, falar de identidade de género é ser machista ou homofóbico, falar de agricultura é ser negacionista das alterações climáticas. Passados 50 anos do 25 de Abril, a esquerda que se arroga como sendo a elite intelectual, progressista e libertária deste país tem afinal uma relação difícil com a liberdade. Os valores de Abril de 1974 só são válidos para quem partilha a visão de esquerda da sociedade.
Este registo da esquerda explica, e muito, o "algo que falhou" a que se referiu Manuel Alegre.
A esse propósito, relembro a minha experiência enquanto autarca na Assembleia de Freguesia de Avenidas Novas em Lisboa, nos anos de 2017 a 2021. A forma cega e unilateral como a Câmara Municipal de Lisboa, liderada por Fernando Medina, impôs sem contemplações o projecto das ciclovias nessa freguesia de Lisboa, suprimindo centenas de lugares de estacionamento com forte prejuízo dos residentes, sem promover qualquer esforço de explicar os benefícios da medida, ou de oferecer alternativas aos residentes, é um exemplo da forma como a esquerda impõe as suas ideias e políticas de forma autoritária, levando muitos a questionar a legitimidade daquela ao se arrogar a herdeira dos valores da revolução de Abril.
Perto do final do mandato, e face à aproximação das eleições, o socialista Fernando Medina promoveu uma iniciativa de esclarecimento da população da freguesia antes da supressão de mais 200 lugares de estacionamento na Avenida de Berna para implementação da ciclovia. Em pleno COVID, o pavilhão da EB nº 44 no bairro de Santos ao Rego encheu-se de residentes ávidos pela oportunidade de ouvir o vereador da mobilidade da C.M.L. e de manifestar a sua insatisfação perante o que se estava a passar. Numa sessão conturbada e controlada pelo executivo socialista da Junta de Freguesia, vários jovens activistas climáticos estrategicamente posicionados na audiência, e que nem sequer residiam naquela freguesia, intervieram, não hesitando em tentar abafar os residentes, apelidando as suas intervenções de fascistas, retrógadas e anti-progressistas.
Muito do falhanço do 25 de Abril de 1974 passa por esta convicção arrogante da esquerda de que é a titular da única visão justa do mundo, numa demonstração de que a pluralidade e a liberdade de opinião é algo com que lida mal. Uma das maneiras de preservar essa percepção é a tentativa activa de proibir a discussão crítica de certos temas, rotulando perjorativamente todos os que ousam opinar de forma diversa sobre os mesmos.
Cumprir os valores de Abril é descer do pedestal e aceitar que há outras visões democráticas de um mundo justo."
Pedro Proença-In Sábado