terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

A República caiu à rua

Nem sempre concordo com o articulista, mas dou à estampa o pertinente artigo de opinião de Miguel Sousa Tavares que, desassombradamente, diz o que pensa a respeito da actual catadupa de greves:
"Pelo que tenho lido e ouvido, toda a gente — começando pelo Presidente da República, passando por todos os partidos e acabando em todos os comentadores — não tem dúvidas em apoiar a “justa” luta dos polícias. Eu devo ser então a excepção: não só não alcanço a justiça dela (fora o facto de ganharem pouco, como todos os portugueses), como não consigo ter qualquer simpatia por formas de luta que passam pela deserção em massa do cumprimento dos deveres através de expedientes que não são dignos de quem veste farda e vão até ameaças de boicotar a realização de eleições ou outras “acções desesperadas” — tudo depois, julgam eles, imunizado pelas cantorias do hino nacional, como se esses súbitos ataques colectivos de patriotismo, tal como os súbitos ataques colectivos de indisposições gástricas, os absolvessem da grosseira violação dos deveres do cargo. Há ocasiões em que sinto em mim um instinto anarquista, que desperta sempre que me vejo confrontado com os abusos ou o uso irracional da autoridade por parte da polícia (felizmente, devo dizer, ocasiões cada vez mais raras). Mas agora, vendo os homens armados a quem cabe vigiar pela nossa segurança em atitudes de rebelião pública contra a lei e o Estado de direito, constato, paradoxalmente, que estamos desarmados para restabelecer a ordem contra a anarquia de quem a devia manter. E pergunto-me que autoridade terão eles de futuro para imporem a ordem pública. Isto quanto à forma de luta. Mas, quanto aos seus fundamentos, à sua apregoada justiça, ainda não vi claramente justificadas as suas razões. Ao contrário do que foi dito por um dirigente sindical da PSP, não é verdade que os polícias “não tenham nada a perder, porque só ganham mil euros por mês”. Em 2023, um agente que entrasse para a PSP ganhava 1257 euros, a que acrescia 20% do tal subsídio de risco que agora querem ver equiparado aos da PJ, mais três coisas de que os inspectores da PJ não beneficiam: subsídio de turno, subsídio de patrulha e serviços gratificados voluntários (a espectáculos desportivos, concertos, vigia de embaixadas, visita do Papa, etc.). Quanto ao subsídio de risco, é de notar, primeiro, que estamos a falar de um dos países mais seguros do mundo, em que, em média, haverá um polícia a morrer em acções de rua durante um ano, e, depois, que, independentemente de saber em qual das actividades haverá maior risco, não é comparável nem o nível de habilitações exigido a um inspector da PJ — que tem de ser licenciado com um curso superior — nem o nível de missões desempenhado por ele ou por um agente da PSP, um guarda da GNR, um guarda prisional, um guarda-florestal ou um guarda-marinha: não é por todos saberem cantar o hino que todos devem ganhar o mesmo. Por outro lado, o aumento do valor do subsídio de risco para os inspectores da PJ é igual em todos os escalões da hierarquia, o que não acontece nas outras forças de segurança, e abrange 1200 efectivos, contra 43 mil das forças de polícia. O encargo permanente para o Estado andaria à roda de 500 milhões de euros por ano — um encargo que um Governo de gestão não pode assumir a um mês das eleições, mas que não custa nada a quem não espera vir a ser Governo apoiar entusiasticamente. Agora são os polícias, mas na rua já estão também os bombeiros: sempre que cheira a dinheiro a ganhar, estão lá os bombeiros, sapadores ou ditos voluntários. E também já lá estão os agricultores, de que a grande maioria, os pequenos agricultores, tem muitas e válidas razões de queixa, mas que só despertaram depois de verem os seus colegas europeus a cortarem estradas e que, não tendo pronto nem pensado um caderno de reivindicações adequado, foram atrás deles pelas más razões, e não pelas boas e próprias. Antes destes, tinham sido, e são ainda, os oficiais de justiça, cujas greves de zelo, que duram há mais de um ano, atrasam dramaticamente todos aqueles, particulares e empresas, que precisam que um serviço público essencial à economia e à vida das pessoas funcione em tempo útil. Antes ainda foram os professores, eternamente agarrados à reivindicação de verem reposta a totalidade do tempo não contado para efeitos de promoções durante a estada da troika: um ano de escola pública habitualmente sem aulas, com os correspondentes resultados demolidores nos índices de aprendizagem dos alunos que os estudos mostram. Tinham sido também os médicos e enfermeiros, cuja recusa a mais horas extraordinárias lançou o caos nos hospitais públicos e está apenas momentaneamente suspensa devido ao crédito de horas de 2024 ainda não estar esgotado. A República caiu à rua Ilustração Hugo Pinto E no horizonte perfilam-se já, outra vez, as ameaças dos camionistas, capazes de paralisarem todo um país onde a ferrovia é apenas um slogan e tudo se distribui por estrada. E rezem a todas as alminhas para que, atrás deles, não desperte também essa peculiar classe sindical dos estivadores. E, enfim, temos as Forças Armadas, que, por estatuto e dignidade profissional, estão aparentemente tranquilas, mas que serão quem mais razões de queixa tem. As nossas FA estão em vias de desaparecimento por falta de efectivos e incapacidade de os recrutar: é sintomático que, num anúncio de recrutamento, a Marinha, sem dizer quanto oferece aos candidatos, diga que lhes dá “alojamento”. É verdade, em minha opinião, que, se chegámos a esta situação, é porque gerações de chefes militares acharam mais importante investir em brinquedos de luxo do que investir em homens. Como escreveu um embaixador americano em Lisboa, os nossos chefes militares, em matéria de equipamento, só queriam do bom, do mais caro e o último grito. Vai-nos custar centenas, milhares de milhões, voltar a ter umas FA minimamente capazes de servir o país e as suas missões. Mas como elas não se manifestam nas ruas e satisfazer as suas reivindicações não dá votos... Estava o Governo a preparar-se para celebrar essa coisa estranha de um ano com superávit das contas públicas e a descida da dívida da República abaixo de 100% do PIB quando a dr.ª Lucília Gago resolveu derrubar o Governo e o incontinente Marcelo Rebelo de Sousa viu aí uma ocasião propícia para desestabilizar o país, desprezando uma maio­ria absoluta e escancarando as portas a todos os demagogos e a todos os que têm capacidade mobilizadora para lhes apresentarem uma factura a pagamento. Entre os primeiros, soltou-se logo Pedro Nuno Santos, esse grande gastador de dinheiros públicos, que a si próprio se define como pertencendo à mais perigosa categoria de políticos — os que erram mas fazem —, e, na sua esteira, todos os outros, pois que Marcelo nos chamou a eleições e concedeu um longo período para a demagogia à solta. E logo os partidos se dividiram em três categorias: os que esperam governar e prometem tudo e uma descida de impostos; os que não esperam governar e prometem ainda mais, mas com subida de impostos para os “ricos”, e o André Ventura, cuja demagogia já ultrapassou o patamar da pornografia e agora navega na área do nacional-socialismo, não por ideologia, mas por ignorância e absoluta falta de vergonha. Já do lado dos outros, dos que se põem a jeito para colherem os despojos deste festim ou de o exigirem nas ruas, caminhando e cantando o hino nacional, se repararem bem, verão que todos eles ou são funcionários do Estado ou vivem dependentes do Estado, dos seus apoios, dos seus favores, da sua dívida. E que todos tiram partido de actuarem em sectores essenciais à vida colectiva, mas onde o serviço público, que é a sua missão e o que se espera deles, é sempre estranhamente acompanhado de subsídios para fazerem o que é, afinal, o seu trabalho: os espiões do SIS têm um “subsídio de missão”, para compensar o “desgaste físico” de estarem sentados à secretária; os agentes da PSP, um subsídio de “patrulha”, por andarem nas ruas, ou de “turno”, por ficarem na esquadra, os militares, um “subsídio de guerra”, por fazerem missões no exte­rior, os bombeiros, por apagarem fogos, e por aí fora. Todos trabalham menos horas do que no privado, mas todos se declaram em burnout; quase todos se dizem “desmotivados”, mas nenhum se demite do seu emprego garantido para a vida. Acredito que a maioria seja bons trabalhadores e alguns deles excelentes, o problema é que qualquer tentativa para os classificar e remunerar pelo desempenho esbarra sempre na oposição de uma maioria que considera isso uma inaceitável discriminação. Cá fora, porém, vive uma maioria silenciosa de trabalhadores que não tem poder reivindicativo. Não fazem greves nem se autodiagnosticam com baixas às segundas e sextas ou vésperas de feriados; não têm promoções automáticas nem horários de 35 horas; preo­cupam-se com a situação financeira das empresas onde trabalham porque sabem que, ao contrário do patrão Estado, elas podem falir e eles ficarem no desemprego. Assistem, em silêncio, à desagregação da República e a reivindicações que, comparando com a sua situação, sentem muitas vezes como injustas e outras como representando uma conta que lhes caberá pagar, sem proveito próprio algum. Há quem lhes chame classe média, há quem lhes chame contribuintes, há quem lhes chame abstencionistas. Talvez um dia eles consigam também sair à rua, só para que se saiba que existem." In- Expresso de 09 de Fevereiro de 2024.

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Revisitando a História

 


Fez agora 132 anos que rebentou no Porto a conhecida revolta de 31 de Janeiro de1891 com o objectivo de implantar a República:

Os republicanos de então tinham várias sensibilidades e ideias diferentes de como acabar com a Monarquia e substitui-la pelo regime republicano. Alguns republicanos eram mais radicais do que outros.

A revolta de 31 de Janeiro no Porto, também chamada "Revolta dos Sargentos" falhou e estes, pese embora a sua coragem, foram deixados à sua má sorte, por várias razões entre as quais avultava a intenção dos Republicanos de Lisboa secundarem os do Porto e proclamarem a República na capital.

Sabemos que implantação da República era inevitável, mais cedo ou mais tarde. Mas foi pena que a revolta do Porto tivesse falhado, porque se a sua implantação tivesse tido êxito, teria sido desnecessária a morte do Rei D. Carlos I (regicídio) e do príncipe, Real, Luís Filipe 17 anos mais tarde em Lisboa.

Quase todas as revoluções e mudanças de regime têm, ou acabam por ter, actos de bravura e até heróicos, mas também accões excessivas e condenáveis. O que seria fundamental é que os seus autores se apercebessem disso, para não irem mais longe do que o necessário.

Os mentores da implantação da República Portuguesa não escaparam a esse dilema.