segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Breve história de Moçâmedes, capital do Namibe.

 



 

A região de Namibe foi descoberta por Diogo Cão, em 1485, realizando-se a primeira exploração territorial, apenas  em 1785, pelo General de Angola, José de Almeida Vasconcelos Soveral e Carvalho, barão de Moçâmedes.
A provincia do Namibe é a terra dos povos hereros, que habitam a região desde a grande migração banta, iniciada na primeira metade do primeiro milénio da era cristã. A formação dos hereros deu-se pelo isolamento geográfico que permitiu a fragmentação etnoliguista banta. Anteriormente a região era de domínio dos povos coissãs, conhecidos por bosquímanos ou  boximanos.
O principal posto colonial português na provincia fez-se na cidade de Moçâmedes que, até ao século XV não registava presença  europeia e se chamava "Chitoto Chobatua" (buraco dos passarinhos) uma aldeia de pescadores, pastores e caçadores que existia na baía do Namibe.
A colonização efetiva do litoral de Angola a sul de Benguela acontece a partir de 1840 com a edificação do Forte de São Fernando de Namibe (obra terminada em 1844) na Ponta Negra, atualmente localizado dentro da malha urbana de Moçâmedes. Em 1845, residiam em permanência no Forte 30 militares e na sua envolvência 70 civis que se ocupavam sobretudo de transações comerciais operadas na feitoria. Exceção à regra era o algarvio Fernando Cardoso Guimarães que em conjunto com outros iniciara aquela que seria a atividade por excelência da futura província de Moçâmedes, a pesca. Todavia, seriam os acontecimentos ocorridos do outro lado do Atlântico a provocarem o aumento exponencial da população branca em Moçâmedes.

Na sequência da independência do Brasil, uma parte da comunidade portuguesa de Pernambuco sentiu-se vítima de perseguição por recusar adotar a nova nacionalidade, por isso, solicitaram ao governo de Lisboa a sua evacuação para uma das colónias do Reino de Portugal. Bernardino Freire de Figueiredo Alves Abreu e Castro surge como o interlocutor entre esta comunidade e Lisboa. Findas as negociações, Castro torna-se líder do primeiro grupo de colonos que em 1849 partiu de Pernambuco a bordo da embarcação “Tentativa Feliz” com destino a Moçâmedes. No ano seguinte, chegou um novo grupo de colonos pernambucanos, aproximadamente 300, desta vez liderados por José Joaquim da Costa. É, portanto, atribuída à comunidade pernambucana a fundação da cidade de Moçâmedes. (SERRAO, 1984) Posteriormente, na década de 1860, começaram a chegar a Moçâmedes comunidades provenientes de Portugal Continental, nomeadamente, do litoral algarvio e da Madeira, estes últimos em consequência do plano governamental de povoamento do Planalto da Huíla. (Bastos, 2009) Por esta altura, as principais fontes de rendimentos da população eram a pesca, a baleação e a transformação do pescado (produção de óleos, salga, secagem e conservas). Quantos às restantes atividades económicas, derivavam do apoio à baleação norte-americana - que passou a incluir Moçâmedes na sua rota de pesca e abastecimento - e da exploração agrícola que fora dinamizada pelos colonos brasileiros quando introduziram novas culturas (e.g. cana-de-açúcar). (MENDES, 2005)

Consequentemente, o crescimento económico, aliado ao fim da escravatura, provocou um déficit de mão-de-obra, razão pela qual aumentou o número de colonos metropolitanos. Assim, com crescimento demográfico e a diversificação da economia, a paisagem foi sendo sistematicamente modelada: aumentou o edificado para fins habitacionais, administrativos e produtivos; desenvolveram-se vias de comunicação (ampliação dos portos, desenvolvimento da rede ferroviária e rodoviária); ampliou-se a área agrícola, de pastagem e de mineração.
E foi nesta linda cidade do Namibe, que pode ser ou já é mesmo um excelente roteiro turístico da província de Angola, independente, que eu autor deste blogue, estive durante 4 anos onde vivi uma história que nunca sonhei contar, mas que já dei à estampa tanto quanto se pode ver aqui, ressalvando pormenores pessoais, menos felizes, alguns deles, provocados por poderes interesseiros e vis de alguns actores repressivos do regime de então.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

A carta mais famosa em língua portuguesa

 


"Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse as vergonhas".

Primeiro foram ervas compridas a que os mareantes chamaram rabos-de-asno. Passaram ao lado das naus. Depois foram os fura buchos, gaivotas. Enfim, avistou-se um grande cimo (a que se chamaria Monte Pascoal, por causa da quadra). Era quarta-feira, 22 de Abril de 1500. Ao fim de 44 dias de viagem, a armada de Pedro Álvares Cabral, encontrou terra a Ocidente e não para onde ia, a caminho da Índia. No dia seguinte o capitão Nicolau Coelho, que tinha estado com Vasco da Gama na viagem inaugural da rota da Índia, foi mandado de batel à praia junto a um rio. Aí 18 homens esperavam os portugueses.
 Pero Vaz de Caminha, o cronista de bordo o encontro amistoso e o “achamento” da nova terra. Descreveu de forma brilhante, com minúcia e estilo numa carta que foi enviada ao rei D. Manual. O capitão Nicolau Coelho deu aos índios um gorro vermelho, uma carapuça de linho e um sombreiro preto; em troca recebeu um cocar de plumas e um colar de contas brancas. O Brasil pode queixar-se de muita coisa sobre a colonização portuguesa, mas de uma, pelo menos, tem de estar orgulhoso: é um país com rara «certidão de nascimento».
 Comentário de Miguel Torga: «Diante da carta de Pero Vaz de Caminha até me vieram as lágrimas aos olhos.» (Diário XIV)."

As naus das viagens marítimas portuguesas levavam, desde meados do século XIV, um escrivão para contar o que se fazia. Pêro Vaz de Caminha, nascido no Porto, seguia na frota de Cabral para ser feitor em Calecute, Índia. Era um escritor feito e culto, fora mestre da Balança da Moeda, no Porto e  era cavaleiro da Casa Real. A sua carta do achamento foi publicada pela primeira vez em 1817, no Brasil, para onde deve ter ido com a corte de D. João VI, em fuga por causa das invasões napoleónicas. O padre Manuel Aires do Casal, que a editou, cortou partes, «por indecorosas». A frota só ficou dez dias no Brasil, partiria a 2 de Maio, continuando para o destino inicial, Índia. Em terra ficaram cinco grumetes, que desertaram, e dois degredados, chorando, porque obrigados. Tão pouco tempo de estada, não deu tempo para o escrivão Pêro Vaz de Caminha se dar tempo do rico país em que esteve. Assim na carta a el-rei-em que fala exclusivamente dos dias brasileiros-fez votos para que D. Manuel se interessasse por razões espirituais:
 «Nela (a nova terra do Brasil) até agora não pudemos saber que haja ouro nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro nem lho vimos. Porém, a terra em si é de muitos bons ares, assim frios e temperados, com os de Entre-Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém, o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar.»
Depois de ter escrito a sua célebre carta, Pêro Vaz de Caminha não teve mais um ano para viver. A feitoria de Calecute foi atacada em Dezembro de 1500 e entre os mortos estava o autor da carta mais famosa em língua portuguesa."

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Queres fiado? Toma!

 


Queres fiado? Toma! Desde 1875.

"A figura do zé-povinho a fazer o gesto do manguito, tinha uma legenda de marca: "Queres fiado? Toma! Criado pelo humorista e artista plástico Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905, o zé-povinho tornou-se a caricatura do português, ignorante, bronco, desconfiado, mas facilmente manipulado. Surge nas inúmeras desenhadas por Bordalo como o povo vítima do poder..., e que hoje ainda o é...até ao dia em que se levantar e deitar abaixo a albarda e com ela todos os que engordam à custa do seu trabalho. Nas Caldas da Rainha onde tinha um ateliê de cerâmica, Bordalo também o criou, em barro, com forma de tinteiro, cinzeiro ou simples estatueta.
O primeiro zé-povinho apareceu na revista satírica A Lanterna Mágica, em 1875, mas o desenho acompanharia Bordalo por todas as revistas onde o artista andou. Zé-povinho: sempre crítico aos partidos, fosse ele regenerador ou progressista, que permutavam entre si o poder, fazendo-hes o manguito, o seu gesto preferido, ou outro gesto do zé, coçando com a mão o cabelo farto, hesitante, eterno enganado.
"Um dia virá talvez em que ele mude de figura e mude também de nome para, em vez de se chamar zé-povinho, se chamar simplesmente POVO, desejou um seu contemporâneo, João Ribaixo, aliás, Ramalho Ortigão. «Um dia...virá.«Virá?"
In: Frases que fizeram a História de Portugal.


quinta-feira, 11 de julho de 2024

08 Feiticeira - Tertúlia do Fado de Coimbra (CD "Relíquias" - 1994)

Eu  que percebo pouco de música, mas que gosto muito de fado, hoje, ao rever algumas das muitas actuações da Tertúlia do Fado de Coimbra, dou à estampa uma das suas (Relíquias de 1994). É uma singela homenagem ao perfeccionismo da Tertúlia e à voz extraordinária de Joaquim Matos. Não serei a pessoa mais indicada para o fazer. Mas, a emoção de ouvir o Fado de Coimbra por quem tão dignamente  mantém viva as tradições da cidade e da sua Universidade, não me deixa outra alternativa.

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Camões, o maior Poeta Épico da História de Portugal

                                                 (Busto de Camões no Museu Soares dos Reis)

As comemorações do quinto centenário do nascimento de Luís de Camões começaram oficialmente na pretérita segunda-feira, dia 10 de Junho, que assinala também o aniversário da sua morte:


"Não mais, Musa, não mais, que a Lira Tenho.

Destemperada e a voz  enrouquecida;

E não do canto, mas de ver  que venho

Cantar a gente surda e endurecida.

O favor que mais se acende o
engenho.

Não no dó da Pátria, não que está metida

No gosto da cobiça e na rudeza

Duma austera, apagada e vil tristeza".



Nota do autor:
A propósito das comemorações dos 500 anos do seu nascimento, Camões merecia melhor. A moeda comemorativa que mandaram cunhar com a sua efígie revela falta de sensibilidade. É um ícone adulterado e vergonhoso da figura de Camões que dignificou Portugal com a sua História Épica dos Lusíadas.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

50 anos do 25 de Abril



"A 14 de Março, faltavam 40 dias para o 25 de Abril, a esmagadora maioria dos oficiais generais dos três ramos das Forças Armadas (brigada do reumático) reúne-se em S. Bento para se solidarizar com a política do Governo". In: As Mágoas do Império de David Martelo.

A supracitada reunião de solidariedade de nada valeu. Na madrugada do dia 25 de Abril de 1974 a Revolução dos Cravos emergiu vitoriosa, logo secundada pelo povo anónimo, acabando com a política ditatorial do Estado Novo e com uma guerra de 13 anos.

 

domingo, 10 de março de 2024

Fazer cumprir Abril

 Seja qual for o resultado dessas eleições, dúvidas não restarão que o eleitorado português se encontra visivelmente divido entre esquerda e direita, sendo ainda notório um crescimento significativo da extrema-direita personificada na imagem do Chega e do seu líder.

"No dia 10 de Março ficaremos a conhecer, quem é que a maioria dos portugueses escolheu para liderar o XXIV Governo Constitucional e quem são os deputados que assumirão funções na XVI legislatura na Terceira República portuguesa. Momento de particular importância para o país, a que acresce o facto simbólico de coincidir com o quinquagésimo aniversário do 25 de Abril de 1974.

Seja qual for o resultado dessas eleições, dúvidas não restarão que o eleitorado português se encontra visivelmente divido entre esquerda e direita, sendo ainda notório um crescimento significativo da extrema-direita personificada na imagem do Chega e do seu líder.

Tal realidade, decorrido que está meio século sobre a "revolução dos cravos", merece reflexão, até porque, como reconhecia no passado mês de Fevereiro o histórico socialista Manuel Alegre, por ocasião da antestreia do filme sobre Mário Soares, "algo falhou".

Mas então o que é que falhou, se é que algo falhou?

"Sabemos hoje que os programas de partidos, as promessas eleitorais, a igualdade dos cidadãos perante a lei, o parlamentarismo, enfim, todas essas tretas são armadilhas de uma imensa minoria que vive luxuosamente à custa de uma imensa maioria. O Estado democrático revelou-se tão arbitrário como qualquer outro, serve antes de mais nada para impor leis relativamente às quais se constitui excepção."

Estas palavras são de Zeca Afonso, pouco antes da sua morte, num tom de desalento premonitório relativamente ao rumo da democracia portuguesa após o 25 de Abril de 1974, em entrevista ao jornal Blitz no ano de 1986. Foi esse mesmo desencanto que o levou, em 1983, a recusar ser distinguido com a Ordem da Liberdade pelo então Presidente da República, Ramalho Eanes.

É, com toda a certeza, este sentimento de desencanto com o rumo da democracia portuguesa que vai levar muitos portugueses a 10 de março a votar em quem acham estar a denunciar abertamente os "podres" da democracia, contra aqueles que se apropriaram dos valores de Abril e que, de forma arrogante, se têm exibido como donos e senhores dos valores da liberdade e do progresso.

O poeta Manuel Alegre, no seu desabafo, falou meia verdade. Algo efectivamente falhou. Contudo, faltou ao poeta socialista a capacidade, e provavelmente a humildade, para assumir a enorme quota parte de responsabilidade que a esquerda tem no desencanto que grande parte dos portugueses tem nesta democracia e a desconfiança que nutre por uma esquerda que se acha proprietária exclusiva dos valores da liberdade e do progresso.

A forma como a esquerda tem radicalizado o seu discurso, rotulando impiedosamente de fascistas, retrógados e xenófobos tudo e todos que não partilham a sua visão da sociedade, tem obviamente contribuído para um sentimento geral que, afinal,  a liberdade não aconteceu com o 25 de Abril de 1974, e que continua a haver temas proibidos. Falar de imigração é ser racista, falar de identidade de género é ser machista ou homofóbico, falar de agricultura é ser negacionista das alterações climáticas. Passados 50 anos do 25 de Abril, a esquerda que se arroga como sendo a elite intelectual, progressista e libertária deste país tem afinal uma relação difícil com a liberdade. Os valores de Abril de 1974 só são válidos para quem partilha a visão de esquerda da sociedade.

Este registo da esquerda explica, e muito, o "algo que falhou" a que se referiu Manuel Alegre.

A esse propósito, relembro a minha experiência enquanto autarca na Assembleia de Freguesia de Avenidas Novas em Lisboa, nos anos de 2017 a 2021. A forma cega e unilateral como a Câmara Municipal de Lisboa, liderada por Fernando Medina, impôs sem contemplações o projecto das ciclovias nessa freguesia de Lisboa, suprimindo centenas de lugares de estacionamento com forte prejuízo dos residentes, sem promover qualquer esforço de explicar os benefícios da medida, ou de oferecer alternativas aos residentes, é um exemplo da forma como a esquerda impõe as suas ideias e políticas de forma autoritária, levando muitos a questionar a legitimidade daquela ao se arrogar a herdeira dos valores da revolução de Abril.

Perto do final do mandato, e face à aproximação das eleições, o socialista Fernando Medina promoveu uma iniciativa de esclarecimento da população da freguesia antes da supressão de mais 200 lugares de estacionamento na Avenida de Berna para implementação da ciclovia. Em pleno COVID, o pavilhão da EB nº 44 no bairro de Santos ao Rego encheu-se de residentes ávidos pela oportunidade de ouvir o vereador da mobilidade da C.M.L. e de manifestar a sua insatisfação perante o que se estava a passar. Numa sessão conturbada e controlada pelo executivo socialista da Junta de Freguesia, vários jovens activistas climáticos estrategicamente posicionados na audiência, e que nem sequer residiam naquela freguesia, intervieram, não hesitando em tentar abafar os residentes, apelidando as suas intervenções de fascistas, retrógadas e anti-progressistas.

Muito do falhanço do 25 de Abril de 1974 passa por esta convicção arrogante da esquerda de que é a titular da única visão justa do mundo, numa demonstração de que a pluralidade e a liberdade de opinião é algo com que lida mal. Uma das maneiras de preservar essa percepção é a tentativa activa de proibir a discussão crítica de certos temas, rotulando perjorativamente todos os que ousam opinar de forma diversa sobre os mesmos.

Cumprir os valores de Abril é descer do pedestal e aceitar que há outras visões democráticas de um mundo justo."

Pedro Proença-In Sábado

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

A República caiu à rua

Nem sempre concordo com o articulista, mas dou à estampa o pertinente artigo de opinião de Miguel Sousa Tavares que, desassombradamente, diz o que pensa a respeito da actual catadupa de greves:
"Pelo que tenho lido e ouvido, toda a gente — começando pelo Presidente da República, passando por todos os partidos e acabando em todos os comentadores — não tem dúvidas em apoiar a “justa” luta dos polícias. Eu devo ser então a excepção: não só não alcanço a justiça dela (fora o facto de ganharem pouco, como todos os portugueses), como não consigo ter qualquer simpatia por formas de luta que passam pela deserção em massa do cumprimento dos deveres através de expedientes que não são dignos de quem veste farda e vão até ameaças de boicotar a realização de eleições ou outras “acções desesperadas” — tudo depois, julgam eles, imunizado pelas cantorias do hino nacional, como se esses súbitos ataques colectivos de patriotismo, tal como os súbitos ataques colectivos de indisposições gástricas, os absolvessem da grosseira violação dos deveres do cargo. Há ocasiões em que sinto em mim um instinto anarquista, que desperta sempre que me vejo confrontado com os abusos ou o uso irracional da autoridade por parte da polícia (felizmente, devo dizer, ocasiões cada vez mais raras). Mas agora, vendo os homens armados a quem cabe vigiar pela nossa segurança em atitudes de rebelião pública contra a lei e o Estado de direito, constato, paradoxalmente, que estamos desarmados para restabelecer a ordem contra a anarquia de quem a devia manter. E pergunto-me que autoridade terão eles de futuro para imporem a ordem pública. Isto quanto à forma de luta. Mas, quanto aos seus fundamentos, à sua apregoada justiça, ainda não vi claramente justificadas as suas razões. Ao contrário do que foi dito por um dirigente sindical da PSP, não é verdade que os polícias “não tenham nada a perder, porque só ganham mil euros por mês”. Em 2023, um agente que entrasse para a PSP ganhava 1257 euros, a que acrescia 20% do tal subsídio de risco que agora querem ver equiparado aos da PJ, mais três coisas de que os inspectores da PJ não beneficiam: subsídio de turno, subsídio de patrulha e serviços gratificados voluntários (a espectáculos desportivos, concertos, vigia de embaixadas, visita do Papa, etc.). Quanto ao subsídio de risco, é de notar, primeiro, que estamos a falar de um dos países mais seguros do mundo, em que, em média, haverá um polícia a morrer em acções de rua durante um ano, e, depois, que, independentemente de saber em qual das actividades haverá maior risco, não é comparável nem o nível de habilitações exigido a um inspector da PJ — que tem de ser licenciado com um curso superior — nem o nível de missões desempenhado por ele ou por um agente da PSP, um guarda da GNR, um guarda prisional, um guarda-florestal ou um guarda-marinha: não é por todos saberem cantar o hino que todos devem ganhar o mesmo. Por outro lado, o aumento do valor do subsídio de risco para os inspectores da PJ é igual em todos os escalões da hierarquia, o que não acontece nas outras forças de segurança, e abrange 1200 efectivos, contra 43 mil das forças de polícia. O encargo permanente para o Estado andaria à roda de 500 milhões de euros por ano — um encargo que um Governo de gestão não pode assumir a um mês das eleições, mas que não custa nada a quem não espera vir a ser Governo apoiar entusiasticamente. Agora são os polícias, mas na rua já estão também os bombeiros: sempre que cheira a dinheiro a ganhar, estão lá os bombeiros, sapadores ou ditos voluntários. E também já lá estão os agricultores, de que a grande maioria, os pequenos agricultores, tem muitas e válidas razões de queixa, mas que só despertaram depois de verem os seus colegas europeus a cortarem estradas e que, não tendo pronto nem pensado um caderno de reivindicações adequado, foram atrás deles pelas más razões, e não pelas boas e próprias. Antes destes, tinham sido, e são ainda, os oficiais de justiça, cujas greves de zelo, que duram há mais de um ano, atrasam dramaticamente todos aqueles, particulares e empresas, que precisam que um serviço público essencial à economia e à vida das pessoas funcione em tempo útil. Antes ainda foram os professores, eternamente agarrados à reivindicação de verem reposta a totalidade do tempo não contado para efeitos de promoções durante a estada da troika: um ano de escola pública habitualmente sem aulas, com os correspondentes resultados demolidores nos índices de aprendizagem dos alunos que os estudos mostram. Tinham sido também os médicos e enfermeiros, cuja recusa a mais horas extraordinárias lançou o caos nos hospitais públicos e está apenas momentaneamente suspensa devido ao crédito de horas de 2024 ainda não estar esgotado. A República caiu à rua Ilustração Hugo Pinto E no horizonte perfilam-se já, outra vez, as ameaças dos camionistas, capazes de paralisarem todo um país onde a ferrovia é apenas um slogan e tudo se distribui por estrada. E rezem a todas as alminhas para que, atrás deles, não desperte também essa peculiar classe sindical dos estivadores. E, enfim, temos as Forças Armadas, que, por estatuto e dignidade profissional, estão aparentemente tranquilas, mas que serão quem mais razões de queixa tem. As nossas FA estão em vias de desaparecimento por falta de efectivos e incapacidade de os recrutar: é sintomático que, num anúncio de recrutamento, a Marinha, sem dizer quanto oferece aos candidatos, diga que lhes dá “alojamento”. É verdade, em minha opinião, que, se chegámos a esta situação, é porque gerações de chefes militares acharam mais importante investir em brinquedos de luxo do que investir em homens. Como escreveu um embaixador americano em Lisboa, os nossos chefes militares, em matéria de equipamento, só queriam do bom, do mais caro e o último grito. Vai-nos custar centenas, milhares de milhões, voltar a ter umas FA minimamente capazes de servir o país e as suas missões. Mas como elas não se manifestam nas ruas e satisfazer as suas reivindicações não dá votos... Estava o Governo a preparar-se para celebrar essa coisa estranha de um ano com superávit das contas públicas e a descida da dívida da República abaixo de 100% do PIB quando a dr.ª Lucília Gago resolveu derrubar o Governo e o incontinente Marcelo Rebelo de Sousa viu aí uma ocasião propícia para desestabilizar o país, desprezando uma maio­ria absoluta e escancarando as portas a todos os demagogos e a todos os que têm capacidade mobilizadora para lhes apresentarem uma factura a pagamento. Entre os primeiros, soltou-se logo Pedro Nuno Santos, esse grande gastador de dinheiros públicos, que a si próprio se define como pertencendo à mais perigosa categoria de políticos — os que erram mas fazem —, e, na sua esteira, todos os outros, pois que Marcelo nos chamou a eleições e concedeu um longo período para a demagogia à solta. E logo os partidos se dividiram em três categorias: os que esperam governar e prometem tudo e uma descida de impostos; os que não esperam governar e prometem ainda mais, mas com subida de impostos para os “ricos”, e o André Ventura, cuja demagogia já ultrapassou o patamar da pornografia e agora navega na área do nacional-socialismo, não por ideologia, mas por ignorância e absoluta falta de vergonha. Já do lado dos outros, dos que se põem a jeito para colherem os despojos deste festim ou de o exigirem nas ruas, caminhando e cantando o hino nacional, se repararem bem, verão que todos eles ou são funcionários do Estado ou vivem dependentes do Estado, dos seus apoios, dos seus favores, da sua dívida. E que todos tiram partido de actuarem em sectores essenciais à vida colectiva, mas onde o serviço público, que é a sua missão e o que se espera deles, é sempre estranhamente acompanhado de subsídios para fazerem o que é, afinal, o seu trabalho: os espiões do SIS têm um “subsídio de missão”, para compensar o “desgaste físico” de estarem sentados à secretária; os agentes da PSP, um subsídio de “patrulha”, por andarem nas ruas, ou de “turno”, por ficarem na esquadra, os militares, um “subsídio de guerra”, por fazerem missões no exte­rior, os bombeiros, por apagarem fogos, e por aí fora. Todos trabalham menos horas do que no privado, mas todos se declaram em burnout; quase todos se dizem “desmotivados”, mas nenhum se demite do seu emprego garantido para a vida. Acredito que a maioria seja bons trabalhadores e alguns deles excelentes, o problema é que qualquer tentativa para os classificar e remunerar pelo desempenho esbarra sempre na oposição de uma maioria que considera isso uma inaceitável discriminação. Cá fora, porém, vive uma maioria silenciosa de trabalhadores que não tem poder reivindicativo. Não fazem greves nem se autodiagnosticam com baixas às segundas e sextas ou vésperas de feriados; não têm promoções automáticas nem horários de 35 horas; preo­cupam-se com a situação financeira das empresas onde trabalham porque sabem que, ao contrário do patrão Estado, elas podem falir e eles ficarem no desemprego. Assistem, em silêncio, à desagregação da República e a reivindicações que, comparando com a sua situação, sentem muitas vezes como injustas e outras como representando uma conta que lhes caberá pagar, sem proveito próprio algum. Há quem lhes chame classe média, há quem lhes chame contribuintes, há quem lhes chame abstencionistas. Talvez um dia eles consigam também sair à rua, só para que se saiba que existem." In- Expresso de 09 de Fevereiro de 2024.

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Revisitando a História

 


Fez agora 132 anos que rebentou no Porto a conhecida revolta de 31 de Janeiro de1891 com o objectivo de implantar a República:

Os republicanos de então tinham várias sensibilidades e ideias diferentes de como acabar com a Monarquia e substitui-la pelo regime republicano. Alguns republicanos eram mais radicais do que outros.

A revolta de 31 de Janeiro no Porto, também chamada "Revolta dos Sargentos" falhou e estes, pese embora a sua coragem, foram deixados à sua má sorte, por várias razões entre as quais avultava a intenção dos Republicanos de Lisboa secundarem os do Porto e proclamarem a República na capital.

Sabemos que implantação da República era inevitável, mais cedo ou mais tarde. Mas foi pena que a revolta do Porto tivesse falhado, porque se a sua implantação tivesse tido êxito, teria sido desnecessária a morte do Rei D. Carlos I (regicídio) e do príncipe, Real, Luís Filipe 17 anos mais tarde em Lisboa.

Quase todas as revoluções e mudanças de regime têm, ou acabam por ter, actos de bravura e até heróicos, mas também accões excessivas e condenáveis. O que seria fundamental é que os seus autores se apercebessem disso, para não irem mais longe do que o necessário.

Os mentores da implantação da República Portuguesa não escaparam a esse dilema.