quarta-feira, 8 de junho de 2022

Holodomoro estalinista e a chantagem da fome

 

Não é nova a cobiça de Moscovo pelas terras negras e férteis da Ucrânia do sul, à volta das cidades de Kherson, Zaporizhzhia e Odessa.

É lá que é plantada uma quantidade considerável dos cereais ucranianos, a quarta maior produção mundial de milho e a terceira de trigo.

Cereais cobiçados, mas cereais necessários para matarem a fome a uma parte considerável da população mundial. Caso estes cereais apodreçam nos silos ucranianos, 250 milhões de seres humanos ficam em risco de fome e 440 milhões deixam de poder comprar os produtos feitos à base de cereais de que necessitam para o essencial da sua alimentação.

A cobiça pelos cereais ucranianos vem já dos longínquos anos 30 do século passado, do tempo de Estaline. É aquilo a que os ucranianos chamaram de holodomor ou o "deixar morrer à fome". Quase cinco milhões de cidadãos de etnia ucraniana morreram à fome nos anos de 1931 a 1933. A causa foi a bárbara política do ditador soviético Estaline, que obrigou os agricultores ucranianos, através de uma "requisição compulsória", a entregarem ao Estado soviético a maior parte da produção de cereais ucranianos. Três anos que custaram cinco milhões de vidas de ucranianos que pereceram à fome.

Não é pois nova a questão dos cereais na Ucrânia!

Ucrânia e Rússia, os celeiros do mundo, são responsáveis pela produção de 28 % de trigo, 29% de cevada e 78% de óleo de girassol.
É com os cereais da Ucrânia que as Nações Unidas matam a fome a cerca de 155 milhões de seres humanos, que habitam os destinos pobres de África e do Médio Oriente. Egipto, Gana, Senegal, Líbano, vá se lá saber como a população de maior carência de nutrição destes países vai alimentar-se este ano se persistir o bloqueio.

Apesar da guerra e ainda com os silos cheios dos 25 milhões de toneladas da colheira anterior, os ucranianos já lançaram mãos à obra para as sementeiras deste ano. Trigo, cevada, aveia, girassol e soja. Mas os campos estão minados, os trabalhadores agrícolas ucranianos deixaram as alfaias e vestiram o camuflado para combaterem as tropas invasoras russas. A escassez de combustível para os tractores agrícolas, a destruição de silos pelos russos, o bombardeamento de depósitos de combustível, vão fazer cair a produção em cerca de 50% dos 106 milhões de toneladas de cereais que a Ucrânia semeou em 2021. E depois, onde vão os ucranianos armazenar as novas colheitas se as anteriores continuam a apodrecer nos armazéns portuários sem que os navios as consigam carregar?

O cinismo do Kremlin já se fez ouvir sobre o assunto. E lá vem a chantagem! A Rússia está pronta "para ajudar a uma exportação sem entraves", mas só se o Ocidente levantar as sanções. Depois, no dizer de Putin, os barcos não circulam por causa das minas ucranianas no Mar Negro. Mas isso não impediu que um barco russo saísse de Mariupol rumo à cidade russa de Rostov, carregado com 2700 toneladas de metal roubado aos ucranianos num miserável exercício de pilhagem. Pilhagem que chegou também aos cereais, onde os russos estão a carregar navios com cereais ucranianos no porto de Sebastopol, na Crimeia. Um derivado da metodologia estalinista!

Os cereais são uma questão sensível que pode fazer escalar a guerra. Os países bálticos, Estónia e Lituânia, profundos conhecedores do modo de actuação do Kremlin, falaram em enviar navios de guerra para o Mar Negro para furar o bloqueio que a Marinha russa está a fazer aos portos da Ucrânia.

Imagine-se, contudo, o risco de uma operação deste tipo? Mas até quando poderá o mundo continuar a assistir a uma situação de flagrante violação do Direito Internacional? Até quando a Rússia, impunemente, vai continuar na senda de lançar o caos num equilíbrio mundial construído ao longo das últimas décadas? Até quando Putin pode, impunemente, pôr em causa o direito à alimentação de seres humanos mais pobres e desfavorecidos do mundo? Até quando Putin poderá continuar com esta chantagem da fome, com contornos muito idênticos ao que fez Estaline no holodomor?

Mas onde é que Merkel teria a cabeça quando vislumbrou em Putin um parceiro confiável?

DN António Capinha-Jornalista

03 Junho 2022 

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